A metamorfose, Kafka*

No início do romance “A metamorfose” de Franz Kafka, o personagem Gregor Samsa desperta de um sonho agitado, metamorfoseado numa espécie monstruosa de inseto. Por um tempo, ele permanece deitado de costas e percebe sua nova condição. Pergunta-se “O que terá acontecido?” e constata que não é um sonho. Então, olha pela janela e vê que o dia está chuvoso, tenta se virar para o lado direito para dormir mais um pouco, mas sua carapaça o impede. Reclama de sua profissão de caixeiro-viajante e considera grotesco ter que acordar cedo.
O grande impacto deste início do romance advém do fato de que a escabrosa transformação da personagem em inseto é tratada de forma corriqueira pela personagem e descrita de um jeito frio e distanciado pelo narrador. Não se trata de a personagem sentir-se como um inseto, mas de sê-lo efetivamente, ou seja, não existe metáfora.
Chama a atenção o fato de que a experiência subjetiva da personagem é objetivada na forma de um inseto, de tal modo, que para Gregor Samsa não faz diferença, nesse primeiro momento, ter se tornado um inseto.

Já a família e a empregada de Gregor, apresentam comportamentos variados em relação à metamorfose. No princípio, a irmã de Gregor fica muito abalada com a metamorfose do irmão e procura, apesar do asco, cuidar para que ele fique bem. Faz isso para poupar seus pais da terrível experiência de ter um filho transformado em inseto. Esse comportamento, no entanto, se torna mecanizado com o passar do tempo.
A irmã alimenta por Gregor um sentimento contraditório. Porque julga conhecê-lo profundamente, passa a tratá-lo como um inseto. Essa atitude ambígua, ao mesmo tempo que o protege, reforça sua condição de estorvo para a família. À medida que Gregor deixa de ser útil no mecanismo familiar, a irmã o despreza cada vez mais, chegando a isolá-lo completamente. Para a irmã de Gregor, mais importante do que preservar a integridade do irmão, é manter em funcionamento a ordem da família.
A empregada representa o contraponto à hipocrisia dos bons sentimentos burgueses. A atitude pragmática da faxineira ao livrar-se do inseto, desmascara o comportamento interesseiro da família que, em nome dos “bons sentimentos”, mantinha o filho na casa por ter a esperança de que ele poderia voltar a ocupar sua função de provedor do sistema familiar.
A presença dos hóspedes, que os pais do protagonista acolhem, ressalta a imagem parasitária da família. Nesse sentido, os familiares de Gregor, contrastados com os hóspedes, se mostram mais insetos do que o filho, em quem pesa todo seu verniz de humanidade.
O romance encerra-se, após o isolamento e morte de Gregor, e a notícia da empregada à família de que se livrou “daquilo”. A família passa a ver o ocorrido como história passada e começa a fazer planos para o futuro. O sol abre e resolvem dar um passeio.
Superado o empecilho de ter um filho metamorfoseado em inseto, a família retoma à sua pacata vida burguesa. Essa atitude revela que na sociedade capitalista, as relações pessoais, inclusive as relações familiares, têm um caráter utilitário determinante.
Gregor Samsa, como peça desajustada desse sistema, é simplesmente descartado, uma vez que não mais supria as necessidades econômicas da família. Ressalta-se, neste livro, o mundo da aparência burguesa, onde o que importa é estar “bem ajustado”.

* Rememorando o primeiro período do curso. Prova que fiz em conjunto com Márcio, Dan e João, na cadeira de Introdução aos Estudos Literários :]

3 Respostas to “A metamorfose, Kafka*”

  1. Gostei do review, deviam escrever deste jeito sobre livros nas revistas. A crítica literária se preocupa mais em julgar a obra do que apresentar o livro ao leitor. Fiquei com vontade de ler esse livro, faz tempo que não leio nenhum romance…

    adoro tu, gabiru!

  2. “Pergunta-se “O que terá acontecido?” e constata que não é um sonho. Então, olha pela janela e vê que o dia está chuvoso, tenta se virar para o lado direito para dormir mais um pouco, mas sua carapaça o impede.”

    super me assustei com o desdém dele. ahaha. aliás, é o desdém que distancia “carapaça” de ter um sentido abstrato, se não, poderia ficar até meio ambíguo mesmo. o incômodo da carapuça e o de possuí-la.

    gostei, gostei, gostei! =)

    beijãozinhões pra você, flor!

  3. Sheldon Says:

    Acordar inseto deve ser interessante. 🙂

    Kafka descreve muito bem Gregor neste livro. Um bom livro.

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